quarta-feira, 15 de outubro de 2008


Hoje dedico esta minha fotografia a essa grande Senhora das letras que foi Sophia de Mello Breyner Andresen e em memória do seu poema, lindíssimo e tão carregado de significado

"Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar".

aqui com a interpretação desse outro Senhor Eduardo Prado Coelho:

"Que dizem estes versos? Algo que aparentemente é simples e que no entanto institui uma falsa evidência: "Quando eu morrer voltarei para buscar / os instantes que não vivi junto ao mar."
Quando eu morrer - palavras óbvias e universais que são em cada um de nós o nó do mistério mais absoluto. Não se pode ouvi-las, não se pode lê-las, sem um estremecimento. Cada um de nós oscila entre o poder absoluto, a soberania sem reservas, e a vulnerabilidade de se saber mortal. Já no sono existe um sinal de fragilidade: um corpo esvazia-se dos cálculos da consciência e fica exposto. Dizer "quando eu morrer" é o enunciado mais perturbante, quer para quem o envia, quer para quem o recebe.

Voltarei para buscar. Que é "voltar"? Que significa lá e aqui? Quem decide voltar? Há ainda um sujeito da vontade, ou trata-se de um movimento cego em que recuperamos o equilíbrio das coisas? Como é que este equilíbrio é uma forma de justiça?

Os instantes que não vivi junto ao mar - esta é a parte mais enigmática. Porque seria lógico que alguém voltasse para recuperar os instantes que viveu junto ao mar. Como se essa experiência do absoluto (e o mar é em Sophia a forma mais intensa de tudo existir) fizesse falta. Mas o que Sophia diz é o oposto: é que do lado de lá, no espaço da morte, que deverá ser a vida mais vida, há como que a capacidade de regenerar o que foi o tempo inútil - e todo o tempo em que se não viveu junto ao mar é tempo perdido.

Nós sentimos assim, ao lermos estes versos, que neles se inscreve lapidarmente uma fórmula de vida: esta oscilação entre a vida e a morte, entre o que está à flor da água e a transcendência de um mar profundo. E há uma espécie de felicidade indizível em falar destes "instantes que vivi junto ao mar" - numa linha de tal modo fina e litoral, desenhada e transparente, que entre mim e o mar, entre o corpo e as águas, entre o meu corpo e o teu corpo, todas as diferenças se rasuram. Sim, Sophia, "como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso".

(EDUARDO PRADO COELHO - Público 06-07-04)

4 comentários:

CPrice disse...

excelente a análise de Prado Coelho, como sempre.
"Quando eu morrer" .. encerra realmente a assumpção do inevitável.

.. eu, que não estou certa de voltar, vou aproveitando por cá os momentos, de preferência junto ao mar. Não para escrever poemas que nunca conseguiria mas por outra realidade igualmente inevitável: a nossa pequenez junto de uma força maior: a Natureza.

Flip disse...

once
olá. O mar prende-nos, fascina-nos, um enorme msitério parece inserir. Uma semana sem ele ao pé e rebento de saudades...a brisa, a areia, o vento, tudo isso é o mar, que impõe respeito mas também calma. Quanto a escrever, faça o favor de começar a debitar alguma coisinha nesse caderno que tem para aí esquecido, imagine-se a si mesma como aquela aguinha que rebenta na areia do mar :)

Luísa A. disse...

Também estranho esse regresso da morte «para buscar os instantes que NÃO vivi junto ao mar», Flip. Ocorreu-me, numa primeira leitura, que poderia querer significar a intenção de encerrar (ou fazer esquecer) esses instantes menos felizes na morte. Mas prefiro a interpretação de Eduardo Prado Coelho. Vem buscá-los para que a morte os regenere e lhes confira a «infinidade» ou o «absoluto» que não tiveram em vida, porque, em vida, «infinidade» só a tem o mar e os instantes passados junto dele.
(Moral da história: que sorte viver em Cascais!) :-)

Flip disse...

Luísa,
o pequeno grande poema encerra uma vontade enorme de regressar e esse regresso destina-o a poetisa a reviver, o mar, os momentos que não viveu, alcançar essa infinidade...
Mas a interpretação de EPC é muito coerente e lógica.
luisa mude-se para cá :) :)