sábado, 22 de novembro de 2008

Medo de «nós»

Os medos.
Se eu disser no plural, tenho menos medo.
Porque, se falar no medo em geral, eu não sei o que é. Se falar no medo de pisar uma cobra na selva amazónica (onde nunca estive), o simples facto de ter algo a que me agarrar (a cobra na selva, longe vá o agoiro) já serve de ajuda - doméstica, se assim se pode dizer, o animal.
Donde, o medo é tanto maior quanto mais for medo de coisa nenhuma.
Ou, se preferirem, medo do próprio medo.
Uma das frases que frequentemente me ocorre é aquele em que Freud explica que o neurótico produz sempre aquilo que mais teme.
Tem medo de tropeçar, pois tropeça.
Donde, é por aí que tudo começa: eu não posso ter medo porque isso vai provocar aquilo de que tenho medo. Se eu tiver medo do cão, o cão vai interrogar-se sobre as razões de eu ter medo e acabará por justificar agressivamente o medo que eu tenho.
Donde, o medo começa por ser ausência de objecto (é isso que significa entrar numa casa às escuras) para acabar também por ser esvaziamento do sujeito, que vai ao fundo das suas neuroses para tentar saber por que tem medo).
Sem objecto nem sujeito, apenas verbo em expansão, o medo vai ter tudo. Já não é o medo de falar, de amar, de viver. É um mundo em que falar, amar e viver começam por ser medo.
Mas o plural ajuda. Se falarmos dos medos que «nós» hoje temos, o «eu» fica mais acompanhado.
Dêem-nos uma boa causa colectiva, e os homens não têm medo de linchar, torturar, espezinhar, violar, matar.
Não há como um «nós» bem enrolado em si mesmo para desinibir uma pessoa: na estrada, na guerra ou num estádio de futebol.
Donde, se me perguntarem de que mais tenho medo, responderei: de «nós» à solta, sem medo.
E recomeça tudo.
In “Expresso”, 20.02.1999
Eduardo Prado Coelho

2 comentários:

fugidia disse...

Excelente texto do EPC, com o qual concordo.

Flip disse...

fugi
já somos dois :-)