segunda-feira, 25 de maio de 2009

No DN:
"Médicos estão contra o testamento vital
por

Céu Neves

Pode uma pessoa fazer um testamento a pedir para não ser reanimada se tiver uma doença terminal e sofrer uma paragem cardíaca? Ou para não ser alimentada artificialmente se estiver em estado vegetativo irreversível? Em Portugal não, ao contrário do que acontece em outros países, nomeadamente em Espanha. Pode deixar as indicações aos familiares ou amigos, mas isso não tem valor legal e a decisão será sempre do médico. É para alterar a situação que a Associação Portuguesa de Bioética (APB) entregou um projecto de diploma aos deputados e vai lutar para que o mesmo seja aprovado já este ano. Têm o voto contra dos médicos.
O assunto é complexo, mas imagine-se um doente com um cancro em fase terminal. Tem uma paragem cardíaca, fica inconsciente e o médico liga-o ao ventilador. Adia-se o momento da morte, mas não se melhora a qualidade de vida. Fará sentido?
Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, a pergunta não se coloca. Porque, justifica, "os médicos têm o bom senso de avaliar a situação e de não ultrapassar o que é normal", o que quer dizer, "não causar sofrimento ilimitado ao doente". E conclui que votará contra qualquer documento que tenha "carácter impositivo do ponto de vista jurídico".
O facto de alguém deixar instruções (ver P&R) muito tempo antes de estar perante uma doença é o principal entrave de Pedro Nunes à regulamentação sobre esta matéria.
Mas, contrapõe Rui Nunes, presidente da APB, a legislação visa precisamente evitar ambiguidades no tratamento destes casos. Acredita contar com a adesão dos deputados e promete que, depois do referendo sobre o aborto, a associação irá pressionar o Parlamento para discutir a lei.
A questão nada tem a ver com a eutanásia, argumentam os defensores da regulamentação. Não se trata de acabar com a vida de alguém a pedido, mas de a pessoa poder decidir "de forma responsável e livre" sobre os cuidados médicos que deseja receber num problema clínico em que não goze de capacidade, física ou intelectual, para o fazer. E, se pode decidir antecipadamente não doar os órgãos a outro doente, por que razão não pode prevenir uma situação limite no caso de estar doente?
Vontade do doente
A proposta de regulamentação parte de um princípio fundamental: "a autonomia do doente em matéria de cuidados de saúde, considerando ilegal qualquer intervenção médica sem o seu consentimento, mesmo que daí possa decorrer a sua morte", diz Rui Nunes. E sublinha que Portugal ratificou a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, o que implica "o dever de respeito pela vontade anteriormente manifestada pelo doente" e que a situação está prevista no Código Penal (artigo 156.º). Ou seja, a proposta "vai no sentido de regulamentar algo que já consta da lei do nosso país".
As justificações são aceites por Isabel Neto, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, que concorda com a existência de regulamentação. Entende, no entanto, que o assunto deve ser amadurecido e objecto de uma ampla discussão. Porque a vontade do doente, pegando no mesmo exemplo de alguém com um cancro em fase terminal, pode ser "façam-me a reanimação". E argumenta: "As pessoas são alvo de medidas agressivas para as manter vivas a todo custo. Isso não é ético, não é isso que a medicina diz."
Isabel Neto presta cuidados paliativos há 13 anos, normalmente a pessoas em fase terminal, e defende que a questão dos testamentos vitais tem de ser discutida no âmbito da comunicação com os doentes. "Os médicos têm problemas de comunicação, porque as coisas estão muito centradas no modelo paternalista. O médico é que sabe o que é melhor para o doente. É preciso abandonar essa visão e centrarmo-nos na relação de partilha entre o médico e o doente."
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) concorda com a legislação e este é um assunto que irá debater durante o ano. "É uma matéria muito complexa e que entronca nas questões do consentimento informado, na necessidade que o médico tem de averiguar qual seria a vontade do doente naquele momento em que não se pode manifestar. É necessário encontrar formas que estabeleçam a melhor maneira de averiguar a vontade do doente", argumenta Paula Martinho, presidente da CNECV."

Eis matéria controversa que coloca frente a frente direito e ética, o ser e o dever ser, vai ser interessante de acompanhar, oxalá a coerência impere e o bem-estar dos doentes vingue, seja ele qual for. Aguardemos.

Sem comentários: