segunda-feira, 25 de maio de 2009



Uma vez subi a serra de sintra até ao castelo dos mouros,
e tirei um retrato nas muralhas para que alguma coisa ficasse
desse dia, embora os mouros não estivessem lá. O que ficou,
por fim, fomos todos nós, olhando a objectiva que
alguém segurou, sabendo que não ia estar no retrato. Há
sempre voluntários para não entrarem na história: alguém
que sabe que é noutro lugar a memória, e que pouco importa
o facto de não ficar entre gente que se há-de perder com
o tempo, com a vida, com as distracções do mundo. Eu,
no entanto, o que lembro quando olho o retrato onde estou,
no castelo dos mouros da serra de sintra, são as tuas mãos
que seguram a máquina, e o teu dedo que carrega no botão
para tirar a fotografia. Talvez me tenha parecido mais simples
a subida até ao castelo por ter ido contigo, puxando-te
pela mão, enquanto o sol da tarde lembrava que há um
tempo próprio para subir ao castelo, pensando na descida;
e se não falámos de amor foi porque as subidas pelos
caminhos de terra obrigam a outras conversas, sobretudo
quando os ramos nos arranham os braços, e um silêncio
branco desce do céu com o meio-dia. "Que queres de mim?",
poderias ter-me perguntado. O amor, quando a tarde
ainda não começou a cair, confunde-se com o canto das
aves que só ali estão porque é campo, e não faltavam árvores
para os ninhos dessa primavera. Eu dizia-te: quero que venhas
comigo, até ao castelo, e segures a máquina para que todos
possam ficar na fotografia. "E eu?", dizes-me. Mas tu
já não fazias parte dessa história; e talvez tenhamos descido
sem a dificuldade que me fez segurar-te na mão, e puxar-te
para o castelo - agora que o retrato ficou tirado, sem ti,
embora depois disso, sempre que o olho, tu sejas a única
pessoa que eu vejo, através dos teus olhos que espreitam
pela objectiva, esperando que ninguém se mexa, para
tirar esse retrato onde nunca mais hás-de ficar.

Nuno Júdice in O Estado dos Campos

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