terça-feira, 17 de novembro de 2009


“Entro, sorrio um sorriso vago para ninguém, não paro, vou até à estante do fundo, finjo procurar um livro qualquer numa prateleira alta. O velho truque, sim. Olhem bem, amigos, a ver se aprendem alguma coisa. Vamos começar pelo princípio. O primeiro gesto, o truque inicial, movimento nº1. Ainda se lembram? Isso, muito bem. Nº1, guardar o objecto. Livros magros ou, pelo menos, é só uma pequenina adenda, não muito gordos. Não se rouba Bíblias, por exemplo. Mas vá, vamos lá. Fingir que estamos noutra, muito concentrados à procura de altaliteratura, tirar um livro dos mais sérios, folhear com ar de conhecedor, sobrolho franzido, olhos parados. Não aconselho, no entanto, a ler efectivamente as palavras impressas. Não, isso não. Pode ser distractivo, e a mínima interferência num momento crítico destes, já se sabe, pode ser a morte do artista. Não, ler mesmo não. Tudo faz-de-conta, tudo bom engano. Lembrem-se, meus caros, é uma arte, coisa séria. Mas, portanto, nunca ler as próprias palavras, olhar antes para o meio do livro, um imaginário ponto central no risco negro que, por assim dizer, talha o livro em dois, um olhar microscópico e desfocado que não permita desconcentrações de espécie alguma. Nesta fase, pode ser útil contar até cinco para dentro. Completo silêncio, como é óbvio. É a regra de ouro para quem quer dominar este jogo de desviar livros.(...)”

Jacinto Lucas Pires in (Em Linguagem de Frases), Colectânea da FNAC (O Prazer da Leitura)

2 comentários:

Vera disse...

Subscrevo estas palavras do JLP. Um jovem muito inspirado!

Flip disse...

Vera,
sem dúvida, um jovem esclarecido
:-)