quinta-feira, 30 de abril de 2009


imagem de guitarrista na Rua do Ouro, Lisboa


Toda a poesia, e a canção é uma poesia ajudada, reflecte o que a alma não tem. Por isso a canção dos povos tristes é alegre, e a canção dos povos alegres é triste. O Fado, porém, não é alegre nem triste. É um episódio de intervalo. Formou-o a alma portuguesa quando não existia e desejava tudo sem ter forças para o desejar. As almas fortes atribuem tudo ao Destino; só os fracos confiam na vontade própria, porque ela não existe. O fado é o cansaço de alma forte, o olhar de desprezo de Portugal ao Deus em que creu e que também o abandonou. No fado os Deuses regressam, legítimos e longínquos.»

Fernando Pessoa, in «Notícias Ilustrado», 14.04.1929


Aproximam-se as eleições e começamos a ser inundados com as sondagens. Se fosse agora fulano tal era eleito, se fosse hoje era o partido x que ganharia, etc etc.
Confesso que não ligo a sondagens, encaro-as como exercício das máquinas políticas para influenciarem o eleitorado, são manobras ou tácticas usadas para a conquista do poder.
Baseiam-se, afinal, em processos de intenção, falíveis.
Podem ser objecto de manipulação? Acredito que sim.
Por isso, não insistam.

palacete rosa, Estoril - foto flipvinagre
No hospital, pergunta o médico:

- O senhor é o dador de sangue?

- Não, eu sou o da dor de cabeça!


There are places I'll remember
All my life, though some have changed
Some forever, not for better
Some have gone and some remain

All these places had their moments
With lovers and friends, I still can recall
Some are dead and some are living
In my life, I've loved them all

John Lennon / Paul McCartney
Arpad Szenes, "Marie Hélène Dessinant", 1939-1940

"A beleza perece perante a vida, mas é imortal perante a arte"
Leonardo Da Vinci
Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;
outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;
outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,
fluidez sem transparência.
Presença, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.
Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece.

António Gedeão, in "Movimento Perpétuo", 1956


Existem várias lendas sobre a origem da mulher. Uma diz que Deus pôs o primeiro homem a dormir, inaugurando assim a anestesia geral. Tirou uma das suas costelas e, com ela, fez a primeira mulher. A primeira provação de Eva foi cuidar de Adão e aguentar o seu mau humor enquanto ele convalescia da operação. Uma variante desta lenda diz que Deus, que já tinha ultrapassado o prazo da Criação, fez o homem à pressa, pensando "OK. Depois eu melhoro". Mais tarde, com o tempo, fez uns melhoramentos, a que chamou mulher, que é "melhor" em aramaico. Outra lenda diz que Deus fez a mulher primeiro. Esmerou-se nas suas formas. Aparou aqui e tirou dali, e com o que sobrou fez o homem. Só para aproveitar o barro. Em certas tribos nómadas do Médio Oriente, ainda acreditam que a mulher foi, originariamente, um camelo, que na ânsia de servir seu mestre se foi transformando até adquirir sua forma actual. No Extremo Oriente, uma lenda considera que as mulheres caem do céu, já de kimono. Já no Ocidente, persiste a crença de que mulher se compra através de anúncios, normalmente via telefone, podendo-se escolher idade, cor da pele e o tipo de massagem. Todas estas lendas, claro, têm pouco a ver com a verdade científica. Hoje sabe-se que o homem é o produto de um processo evolutivo que começou com a primeira ameba a sair do mar primevo. É descendente directo de uma linha específica de primatas, tendo passado por várias fases até atingir o seu estado actual. Aí encontrou a mulher, que ainda ninguém sabe, realmente, de onde veio.

Luís Fernando Veríssimo

quarta-feira, 29 de abril de 2009



Pouco me importa.
Pouco me importa o quê?
Não sei: pouco me importa.

Alberto Caeiro, 24-10-1917

no Estoril - foto flipvinagre


To the optimist, the glass is half full.
To the pessimist, the glass is half empty.
To the engineer, the glass is twice as big as it needs to be.
"Há 30 anos que desfilam as mesmas caras, se ouvem as mesmas vozes, se lêem as mesmas frases com monótona aridez. O País é domado por um grupo sem prestígio mas com poder. Esperávamos um sistema, emergiu um domínio. A erupção do "bloco central de interesses" (ou seja: a divisão do bolo entre PS e PSD) assinala a degenerescência de Abril num atoleiro. Deixou de haver afinidades ideológicas e as convicções foram substituídas por uma cronologia contínua, destinada ao enriquecimento de alguns, e que encobre, afinal, as ausências de carácter e as trapalhadas das mudanças de partido."
No DN - Baptista Bastos "Sem novidades de cá"

terça-feira, 28 de abril de 2009


Não sei se terá sido sonho
já só tenho vaga lembrança
ela exibia um ar risonho
uma felicidade de criança

manhã cedo, alvorada
sinais que não é costume
no chão, uma almofada
no ar, o seu perfume

Ela, porém, já ausente
Deixou-me nota escrita
o coração ainda quente
a ausência...maldita!

Estoril - foto flipvinagre


Igualdade...uma utopia.
É conceito que serve para ‘vender’ promessas e obter votos, tenho para mim que a sua concretização plena dificilmente vingará um dia.
É meramente programática, simplesmente ideológica, gera expectativas politicamente exploradas, provocando, posteriormente, pela sua impraticabilidade, sonhos desfeitos. Ainda há quem acredite e continue sonhando, prefiro não, até porque durmo profundamente.


"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu carácter, a exemplo da abelha ou da aranha, que, do suco das flores, retiram, a uma o mel, a outra o veneno".

Nietzsche

segunda-feira, 27 de abril de 2009


Cascais - foto flipvinagre
Hoje de manhã consegui esconder meia dúzia de palavras. Só as vou libertar lá mais para o fim do dia. Tinha em mente a sua utilização no fim da tarde e para que elas não fugissem agi assim. Pu-las de quarentena. Elas não reclamaram. Uma delas confessou-me até que os poetas as faziam levantar muito cedo, mas, regra geral, disse ela, recorrem a nós mais durante a madrugada, partilhamos versos com eles, bailamos nas suas cabeças, nos seus teclados e canetas e gostamos, sentimo-nos bem, e adoramos conviver com os candeeiros, há várias gerações que nos damos bem com eles, somos todos amigos e construímos juntos obras assinaláveis.
Quando o sol se pôs libertei-as, não reclamaram de ter ficado sossegadinhas na prateleira e então fiz-lhes uma surpresa, apresentei-lhes o meu candeeiro novo, foi uma festa, entabularam conversação e só eu e a luz ficámos como testemunhas do facto. A noite chegou, olhou para mim e sorriu, estivemos todos na maior animação, até agora, pouco fizemos, praticamente.

os animais são nossos amigos


Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...

(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

domingo, 26 de abril de 2009


Cascais - foto flipvinagre

Um homem junta folhas num
monte no seu quintal, uma pilha
E apoia-se no ancinho e
queima-as todas.
A fragrância enche a floresta
as crianças param e sentem o
aroma, que se tornará
nostalgia em alguns anos

Jim Morrison
(tradução de Ana Paula Sousa e António Costa)

a criatividade tem um lado negativo? ou a criatividade pode abolir regras?
Hoje apetecia-me pedir o corpo emprestado a uma gaivota, voaria mar adentro até ao pôr-do-sol, faria escalas em barcos de recreio para descansar um pouco as asas e quando lá chegasse, antes do sol começar a aquecer a outra metade do planeta, já teria em meu poder luz bastante para iluminar o caminho para a eternidade. O pior é navegar sózinho, não partilhar a felicidade durante o trajecto. Por isso vou adiando falar no assunto à gaivota.

sábado, 25 de abril de 2009


Lisboa - foto flipvinagre

“apalpar manhãs”

sonhei que estava enamorado pela palavra antigamente.
eu sorria muito nesse sonho – fossem gargalhadas. aproveitei a ponta desse sorriso e fiz um escorrega. deslizei. tombei no início de uma manhã.
pensei ver duas borboletas mas [riso] eram duas ramelas. peguei nas duas: o peso delas dizia que eu estava acordado. [a partir do tom amarelado das ramelas é possível apalpar manhãs].
então vi: nos dedos, na pele do corpo por acordar, estavam manchas muito enormes: eram manchas de infância
gosto muito desse tipo de varicela.

Ondjaki in "Materiais para a confecção de um espanador de tristezas" (poesia, 2008)

sugestões para o banho, nada como um recipiente sugestivo para o 'gel'

imagem no "DN" de hoje

"Há uma Justiça para ricos e outra para pobres, uma Justiça para famosos e outra para anónimos, como há Saúde e Educação diferentes para ricos e pobres. Cumprir Abril é uma questão de justiça. Já não podemos esperar mais 35 anos".
Paulo Baldaia, director da TSF, "Jornal de Notícias",

"...A situação do ensino não é felicitante. Ah!, aquela abertura apressada e sem critério de Universidades, para ganhar eleições! O fosso entre os muito ricos e os muitos pobres é cada vez mais fundo e parece que o maior da União. A corrupção campeia. Quem acredita ainda no sistema judicial? E os jovens desinteressam-se pela política, como que para evitar um lugar mal frequentado. Que Abril foi esse que, passados 35 anos, ainda permite 2 milhões de pobres? E quem sabe o que vem aí?
Ainda é de ânimo que falamos, quando o que nos visita é o desânimo? Sim, é ainda de ânimo, se o desânimo se tornar força dialéctica para a sua autosuperação.(...)"
no DN - 35 anos depois por ANSELMO BORGES

No jornal digital:
"Uma sondagem da SIC, Expresso e Rádio Renascença revela que quase 78 dos portugueses por cento concorda com as candidaturas independentes à Assembleia da República e que a grande maioria não se revê nos políticos.
Um estudo realizado para a SIC, Expresso e Rádio Renascença, entre os dias 25 a 31 de Março, com recurso a 1018 entrevistas telefónicas validadas revela que 77 por cento dos portugueses não se revêem nos partidos políticos contra 16 por cento que afirmam o contrário.
72 por cento dos portugueses acredita que os interesses próprios motivam a acção dos políticos, 17 por cento discordam, 78 por cento dos inquiridos concorda que candidaturas independentes ao Parlamento devem ser possíveis, fora dos partidos."

Este 25 de Abril deveria ser para (re)pensar, a voz na Assembleia da República deveria ter sido dada ao próprio povo, ele é que deveria ir lá discursar sobre o que significa o 25 de Abril estes anos todos, as expectativas e as aspirações, o tempo actual e as frustrações da maioria, o capital que circula só por meia dúzia de bolsas, a destruição do aparelho produtivo e a mudança enorme na legislação laboral que consagra um futuro precário para os jovens, os demais discursos são pura e simplesmente os discursos do costume, da circunstância, das boas intenções blá blá blá...e de boas intenções...

sexta-feira, 24 de abril de 2009


arabescos de Lisboa - foto flipvinagre


A vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido entre as coisas, e enquanto é apenas isso consiste em sentir-se absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas por isso mesmo obriga, quer queiramos quer não, a um esforço para se orientar no caos, para se salvar dessa perdição. Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do universo é o sistema das nossas ideias ou convicções vigentes. Quer queiramos quer não, vivemos com convicções e de convicções. O mais teoreticamente céptico existe apoiando-se num suporte de crenças sobre o que as coisas são. A vida é absoluta convicção. A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma absoluta convicção de que tudo é duvidoso. E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença num ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.

Ortega y Gasset, in 'O Que é a Vida?'


Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço, vamos dançar?, e lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e o volume da música. Terminado o número, um tanto humilhado porque, confesso, tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode, o que foi, meu velho, estás chateado?, e eu, que não, esforçando-me por sorrir, esforçando-me por rir às gargalhadas, como o resto da chusma, chateado? por que havia de estar chateado?, o dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou, e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim. Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sombriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o de repente tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum — visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.

— Sou Fulano — disse-lhe. — Vendo caixões.

A mão do homem (entre a minha) era lassa e pálida. Os olhos tinham um brilho escuro, vago, como um lago, à noite, iluminado pela luz do luar. A maioria das pessoas não consegue disfarçar o choque, ou o riso, depende da circunstância, quando escutam a palavra caixões. Alguns hesitam: paixões? Não, corrijo, caixões. O sujeito, porém, permaneceu imperturbável.

— Nenhum nome é verdadeiro —, respondeu-me, com forte sotaque pernambucano. — Mas pode me chamar Emanuel Subtil.

— E o que faz o senhor?

— Sou professor...

— Ah Sim? E de quê?

Emanuel Subtil sacudiu a cabeleira num movimento distraído:

— Dou aulas de levitação.

— Levitação?!

— Levitação, sabe?, fenômeno psíquico, anímico, mediúnico, em que uma pessoa ou uma coisa é erguida do solo sem um motivo visível, apenas devido ao esforço mental. A mente movimenta fluidos ectoplasmáticos capazes de vencer a força da gravidade. Eu ensino técnicas de levitação. Sem arames nem outros truques soezes.

— Interessante! Muito interessante! —, respondi, tentando ganhar tempo para pensar. — E tem muitos alunos?

O homem sorriu-me gravemente. É certo que não, disse, nos dias de hoje são poucas as pessoas interessadas em levitar. Tristes tempos estes. O triunfo do materialismo tem vindo a corromper tudo. Escasseiam as vocações para as obras do espírito. As vocações e a força mental — sugeri timidamente. Sim, confirmou Emanuel Subtil, sacudindo outra vez a magnífica cabeleira branca, e a força mental. As pessoas preferem manter os pés bem assentes na terra. E levitava, ele?, quis eu saber. Isto é, praticava com freqüência essa arte esquecida? Emanuel Subtil sorriu absorto:

— Não há dia em que não pratique. Levitar, meu caro senhor, é o mais completo dos exercícios. Cinco minutos em suspensão, logo pela manhã, ao romper da alva, estimula todos os órgãos vitais e regenera a alma.

Inclusive acontecia-lhe às vezes levitar por descuido. Contou-me que São José de Copertino, que viveu entre 1603 e 1663, sofria ataques de imponderabilidade sempre que algo o emocionava. Chamava a isso, com terror, "as minhas vertigens". Um domingo, durante a missa, elevou-se no vazio e durante largos minutos pairou numa aflição sobre o altar, em meio à chama aguda das velas, e ao alarido das beatas, ficando gravemente queimado. A igreja afastou-o, durante 35 anos, de todos os rituais públicos, em razão destas práticas extravagantes, mas nem isso impediu que a sua fama se propagasse. Uma tarde, passeando o santo homem pelos jardins do mosteiro, em companhia de um monge beneditino, foi subitamente arrastado até aos ramos mais altos de uma oliveira por um golpe de vento. Infelizmente sucedia com ele o mesmo que com os gatos, ou os balões, toda a sua propensão era para subir, não para descer, de forma que os monges tiveram de o resgatar de lá com o auxílio de uma escada. Murmurei qualquer coisa sobre a vocação mística das oliveiras, a tendência que demonstram, desde há milênios, para acolherem santos e demiurgos. Emanuel Subtil, porém, ignorou a minha observação. O caso de São José de Copertino, explicou, servia-lhe somente para ilustrar os perigos que incorre um leigo, ainda que excepcionalmente talentoso, ao praticar a arte da levitação sem o acompanhamento de um mestre:

— Você oferecia um Ferrari a uma criança? Certamente que não!

Concordei logo. É claro, por amor de Deus!, não o punha nem nas minhas mãos.

— Levitar não é para qualquer um, — prosseguiu Emanuel Subtil carregando nas palavras. — Levitar exige fé, perseverança e ainda algo mais: responsabilidade. Quer tentar?

E logo ali expôs as suas condições. Trezentos reais por mês. Quatro vezes por semana. Uma hora cada sessão. Naturalmente, acrescentou, seria impossível observar resultados antes de três a quatro meses.

— E se não obtiver resultados?

Emanuel Subtil sossegou-me. Em três meses, convenientemente orientado, até um elefante consegue levitar. Mas ainda que eu me revelasse tão mau levitador quanto bailarino (só então percebi que passara a noite a observar-me) ele próprio me daria um empurrão. Citou-me o caso de um famoso médium inglês, Daniel Douglas Home, que nos anos trinta desafiava a tradicional fleuma britânica fazendo flutuar pianos e outros objectos pesados. Conta-se que uma noite levou um boi para o salão de um rico industrial, e o ergueu no ar. Ia o boi ao nível dos lustres, bem alto e iluminado, quando, por distracção ou um repentino desfalecimento de fé, lhe falharam as forças (ao médium), romperam-se os fluidos ectoplasmáticos, e o animal precipitou-se, com brutal fragor, sobre duas das acólitas.

— Morreram?

— O que lhe parece? — Suspirou. — A história da aeronáutica está cheia de tragédias, pequenas e grandes, mas nem por isso deixamos de andar de avião.

Declinei o convite. A festa chegara ao fim. Um velho negro dançava sozinho, de lágrimas nos olhos, alheio à música, vamos chamar-lhe música, uma mistura de alarme de carros, já rouco e exausto, e metais em convulsão. Duas raparigas muito loiras, muito lânguidas, dormiam abraçadas num sofá. Eu não conhecia ninguém. Ninguém me conhecia.

—Talvez você saiba de alguém que dê aulas de invisibilidade. Nisso estou interessado.

Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.

José Eduardo Agualusa in Manual prático de levitação

quinta-feira, 23 de abril de 2009


Praia de Carcavelos - foto flipvinagre

A missão das folhas

Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento

Ruy Belo

Painel de Nuno Siqueira no Metro (Olivais)

O Metro ia apinhado, era hora de ponta. Ela tinha horror das multidões e sofria um pouco de claustrofobia. Não tinha alternativa, estava atrasada, o Metro era a opção obrigatória. Faltavam três paragens para o seu destino, ela mentalizava-se que era uma questão de poucos minutos. De repente, uma travagem repentina, ela, que ia em pé, viu-se abraçada a um cavalheiro ao seu lado. Ficou ruborizada, mas ele devolveu-lhe um sorriso e ela correspondeu. Ela pensava que era o fim dos seus dias de solidão e de aperto, ela adorou o encontro, o seu olhar de soslaio não largava aquela figura masculina. A sua estação de destino aproximava-se e ela não conseguiu resistir, despediu-se dele com um bom dia ternurento. Ele quis sair também, mas entretanto, tendo hesitado, as portas fecharam-se e ficou retido na composição.
Não voltaram a ver-se, embora se procurassem, diariamente, naquela estação do Metro, acalentando ambos um fogo de paixão.
A estação do “Socorro” nunca mais foi a mesma.

Guia, Cascais - foto flipvinagre

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Qualquer sistema empresarial que possua no topo das hierarquias gente fechada e monopolizadora das iniciativas internas, também conhecidos por parasitas incompetentes, gera um movimento favorável ao adiamento do progresso e ao sucesso tardio das unidades em que estão inseridos.

Hoje, 23 de Abril é o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor.
A todos quantos acrescentam algo mais, ensinam, divertem, ajudam a passar o tempo, tornam imortais os pensamentos e o sentir, as suas reflexões e conhecimentos, aqui fica a homenagem devida. Pelo que li, várias são as autarquias e bibliotecas que estão a promover a oferta de livros, ler é fundamental, é uma das fontes do saber, uma excelente iniciativa.

quarta-feira, 22 de abril de 2009


Estoril matinal - foto flipvinagre


Poder eu largar a raiva, a ira ou a ironia
expressar-me pois à vontade
eis as vantagens da democracia
eis o que vale a liberdade
com um limite bastante
as asas do semelhante

Comemora-se o Dia da Terra.
Esta celebração foi criada em 1970 pelo Senador norte-americano Gaylord Nelsin, que convocou o primeiro protesto nacional contra a poluição.
Desde 1990 é celebrado em vários países e foi instituído como forma de chamar a atenção do homem, para a preservação do ambiente, o que implica uma atitude diária.
Por isso, todos os dias devem ser DIA da TERRA.

lições de ciência política: cada um pedala a sua própria bicicleta
(a imagem é de Max Knight)