domingo, 31 de outubro de 2010
sábado, 30 de outubro de 2010
Não há maior maravilha do que percorrer
as alturas estreladas, abandonar as lúgubres regiões
.......................................................da terra,
cavalgar as nuvens, subir aos ombros de Atlas,
e ver muito distantes, lá em baixo, as pequenas
......................................................figuras
que vagueiam e erram, desprovidas de razão,
inquietas, no temor da morte, e aconselhá-las,
e fazer do destino um livro aberto.
Ovídio, in Metamorfoses.
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Leia mais da crónica de Boaventura de Sousa Santos na Visão. Vale a pena.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
domingo, 24 de outubro de 2010
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
Sophia de Mello Breyner Andersen
sábado, 23 de outubro de 2010
Pés gelados
- Doutor, eu entro no chuveiro e lá está a calcinha da minha mulher pendurada numa torneira.
- Sim.
- O armário do banheiro está sempre cheio das coisas dela. Potes de creme, sprays, loções, bisnagas... Não tem lugar para as minhas coisas. Já tentei jogar tudo fora, mas não adiantou. No dia seguinte, o armário estava cheio das coisas dela de novo.
- Sim.
- A coberta da cama está sempre presa no lado dela. Não consigo puxar para o meu lado.
- Sim.
- Não posso usar o telefone. Está sempre ocupado.
- Sim.
- E o pior, doutor: os pés gelados dela encostando na minha perna, na cama, quando eu menos espero.
- Sim, sim. Só não entendo porque o senhor está me contando tudo isso. Parece mais assunto para um conselheiro matrimonial, não um psicólogo.
- É que a minha mulher morreu há mais de um ano, doutor!
e ainda outra:
Perdedor, vencedor
O perdedor cumprimentou o vencedor. Apertaram-se as mãos por cima da rede. Depois foram para o vestiário, lado a lado. No vestiário, enquanto tiravam a roupa, o perdedor apontou para a raquete do outro e comentou, sorrindo:
- Também, com essa raquete...
Era uma raquete importada, último tipo. Muito melhor do que a do perdedor. O vencedor também sorriu, mas não disse nada. Começou a descalçar os ténis. O perdedor comentou, ainda sorrindo:
- Também, com esses ténis...
O vencedor quieto. Também sorrindo. Os dois ficaram nus e entraram no chuveiro. O perdedor examinou o vencedor e comentou:
- Também, com esse físico...
O vencedor perdeu a paciência.
- Olha aqui - disse. - Você poderia ter um físico igual ao meu, se se cuidasse. Se perdesse essa barriga. Você tem dinheiro, senão não seria sócio deste clube. Pode comprar uma raquete igual à minha e ténis melhores do que os meus. Mas sabe de uma coisa? Não é o equipamento que ganha o jogo. É a pessoa. É a aplicação, a vontade de vencer, a atitude. E você não tem uma atitude de vencedor. Prefere atribuir a sua derrota à minha raquete, aos meus ténis, ao meu físico, a tudo menos a você mesmo. Se parasse de admirar tudo o que é meu e mudasse de atitude, você também poderia ser um vencedor, apesar dessa barriga.
O perdedor ficou em silêncio por alguns segundos, depois disse:
- Também, com essa linha de raciocínio..."
LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO in "expresso"
terça-feira, 19 de outubro de 2010
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
A minha vida aparece sem condão e
monótona
aos que me vêem
no trabalho árduo da oficina
em manhãs apuradas.
A verdade é muito distinta.
Cada noite eu saio e discuto
contra um espírito malévolo
que, se valendo de
máscaras - cão, grilo,
nuvem, chuva, vagabundo,
ladrão - trata de
se infiltrar na cidade
para estragar a vida humana
semeando
a discórdia.
Apesar dos seus disfarces
sempre a descubro
e a espanto.
Nunca conseguiu enganar-me
nem vencer-me.
Graças a mim, nesta cidade
ainda é possível
a felicidade.
Mas os combates nocturnos
deixam-me exausta e ferida.
E para compensar a minha
guerra contra o inimigo,
peço uns restos
de afecto e de amizade.
Mario Vargas Llosa
inédito
Nova Iorque
novembro de 2001
Prémio Nobel Literatura 2010
terça-feira, 12 de outubro de 2010
domingo, 10 de outubro de 2010
10 - 10 - 10
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.
A coerência , a convicção, a certeza são, além disso, demonstrações evidentes - quantas vezes escusadas - de falta de educação. É uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é maçá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade.
Uma criatura de nervos modernos de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter, não crenças religiosas, opiniões políticas, predilecções literárias, mas sensações reigiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária.
Certos estados de alma da luz, certas atitudes da paisagem têm sobretudo, quando excessivos, o direito de exigir a quem está diante deles determinadas opiniões políticas, religiosas e artísticas, aqueles que eles insinuem, e que variãrão, como é de entender, consonte esse exterior varie. O homem disciplinado e culto faz da sua sensibilidade e da sua inteligência espelhos do ambiente transitório: é republicano de manhã, é monarquico ao crepúsculo; ateu sob um sol descoberto, e católico ultramontano a certas horas de sombra e de silêncio; e não podendo admitir senão Mallarmé àqueles momentos de anoitecer citadino em que desabrocham as luzes, ele deve sentir todo o simbolismo, uma invenção de louco quando, ante uma solidão do mar, ele não souber de mais do que da “Odisseia”.
Convições profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as vêem apenas para não esbarrar com elas, esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha, e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida.
Quando é que despertaremos para a justa noção de que a política, a religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética - a estética dos que ainda não a podem ter? Só quando uma humanidade livre dos preconceitos de sinceridade e coerência tiver acostumada às suas sensações a viverem independentemente, se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida."
Fernando Pessoa - in Os Portugueses - A opinião pública(1915)