domingo, 13 de dezembro de 2009


(...) Já de manhãzinha, quando voltei a casa, tinha os músculos relaxados, e a pele dos dedos enrugada. Fiz gazeta ao trabalho e dormi até tarde. Sonhei com jardins submersos, animais aquáticos que ora pareciam cães, ora lembravam focas, e duas sereias nadando ao redor de mim.
Regresso ao princípio do meu relato, uma semana depois da noite de todos os chuveiros. Estou cansado de abrir as torneiras, ora da água quente, ora da água fria. O batalhão de colegas de trabalho das manas acaba de sair. Os automóveis partem, levando com eles gargalhadas, restos de festa, e uma colecção de bisbilhotices actualizadas.
E agora? Vou ter de me decidir. A bigamia é um pecado intolerável para qualquer uma das manas. Quando atravessar aquela porta, deverei escolher com quem passarei a noite. Aposto que as raparigas me esperam, com os corações ansiosos. Um deles ficará quebrado dentro de minutos. Não é bom provocar a fúria de uma mulher, mas, neste caso, não me resta outra opção.
Apelo à coragem, abro a porta, e espreito para a sala, no andar de baixo. À média luz, num sofá, está a Catarina; no outro, a Lara; cada qual com o seu rapaz. A Catarina geme, excitada, quando o gerente bancário lhe lambe a perna e lhe mordisca os dedos dos pés. Por seu turno, de olhos fechados, a Lara sacia-se a beijar o fulano de óculos, que veste apenas uns boxers aos ursinhos. Estou estupefacto.
Desço as escadas, pé ante pé, parando ao ranger de cada degrau, não se dê o caso de elas ou eles repararem na minha presença. Mas, entretidos com beijos e abraços, nenhum nota que eu saio, gatinhando por detrás dos sofás, como um soldado através das linhas inimigas, até ao hall.
Antes de sair, espreito e vejo o tipo dos óculos liberta-se dos boxers. Nu, solta um urro feroz, digno de qualquer fera da savana. A Catarina dá uma risadinha, enquanto arranha as costas ao gerente bancário. Sem dúvida, os quatro parecem mais divertidos, agora que a festa acabou, e a orgia começa.
Com as mãos a tremer, ligo a ignição, e abro a janela para deixar entrar a brisa do mar. “Isto é bem feito” — murmuro para mim — “Aprende a não te envolveres com duas mulheres em simultâneo. Precisavas desta lição!”

trecho de "Água Quente, Água Fria" (um conto de As Fadas não Usam Batom, de João de Mancelos

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