Eis um assunto que anda agora no ar e que o governo português quer impôr à ordem dos médicos. No seu código deontológico, os médicos deverão adaptá-lo à lei, por forma a que um médico não possua qualquer tipo de contrariedade em realizar abortos. A meu ver está em causa o velho dilema e a luta entre a lei e a ética. O médico deve primeiro obediência à ética ou à lei? A meu ver, à ética e só depois à lei. O governo? Que não queira decretar que a lei se sobreponha ética.
Toda a gente reconhece que à ética deve ser tributada prioridade. A lei deve seguir a ética; não é a ética que deve seguir a lei. É a ética que ilumina a lei e esta não deve obscurecer ou contrariar a ética!
A sintonia entre as duas decorre desta prevalência da ética sobre a lei. Era neste sentido que Kant propunha que a política tinha de ser filha da ética.
A objecção de consciência consagra esta mesma hierarquização, pelo que em nome da ética, vertida num código deontológico ou ínsita num quadro de valores, é possível opormo-nos a uma lei, recusando-nos ao seu cumprimento.
Isto revela, no limite, que a ética é mais importante do que a lei. Desejável, portanto, será que a lei não a obstaculize.
Em princípio, isso não acontece. Ou não deveria acontecer. A Constituição da República preceitua que a vida humana é inviolável.Não podia ser doutra maneira, aliás. Assim, não se percebe como é que se concebe uma proposta legislativa que visa os antípodas do que ali está estipulado.
Na ordem do dia está pois o que se pretende exigir quanto à modificação do Código Deontológico dos Médicos.
Ainda recentemente, o director da Maternidade Alfredo da Costa incentivou a Ordem dos Médicos a alterar o actual Código Deontológico da profissão para acolher a prática do aborto (o nº 2 do artigo 47º. do Código Deontológico dos Médicos estabelece que a prática de aborto constitui «falta deontológica grave»!).
Em declarações reproduzidas na imprensa, aquele responsável considerava ser «impensável que a Ordem tenha uma posição dissonante das leis do Estado». Impensável? Impensável não será este desejo de ingerência do Estado nos valores dos cidadãos?
Impensável é presumir que o Estado seja um produtor de valores detendo uma espécie de tutela sobre a ética! Como se ao Estado coubesse impor valores e exportar ética! Não será tarefa do Estado assegurar o respeito pelos valores e quadros éticos dos cidadãos?
Bernhard Häring entende que «o legislador deveria observar o princípio da subsidiariedade e não legislar nem interferir controlando áreas em que a comunidade médica preenche adequadamente a sua função».
Sob um ponto de vista ético, «cada vez se torna mais evidente — acrescenta o referido autor — que não se trata de um assunto de escolha privada, mas de um problema da ética social».
Negar que uma decisão como a de abortar «possua uma dimensão social equivale a negar que a pessoa humana tenha uma dimensão social». Que sentido tem que declare o aborto como um assunto privado? «Não é, porventura, a primeira função do Estado proteger todos os seres humanos no seu direito básico a viver e a desenvolver-se dando protecção aos mais fracos?»
Neste contexto, é eticamente muito problemático urgir a prática do aborto nos estabelecimentos públicos de saúde. Será admissível que o dinheiro dos impostos de quem se opõe ao aborto seja canalizado para abortar?
Se alegam que a vontade de quem quer abortar tem de ser cumprida, porque é que não há-de ser cumprida a vontade de quem se opõe a esse aborto?
Ainda recorrendo a Häring, que Estado será o nosso se «passar a recusar proteger a vida do não-nascido utilizando os impostos que nós pagamos para financiar o “direito” a abortar?»
E não venham com a "ditadura" da maioria democraticamente eleita. Há valores que não são passíveis nem são objecto de votação em qualquer Assembleia, verbi gratia, os valores éticos e morais.O primado da ética prevalece, pois, e sempre em qualquer Estado de direito, por mais teimoso ou autoritário que seja o Governo democraticamente eleito (que, aliás, governa pelo povo e para o povo).
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