"Não sou apreciador da escrita de José Saramago, mas não desconsidero a sua obra literária.
Como autor e cidadão, José Saramago tem todo o direito de exprimir as suas ideias sobre tudo e mais alguma coisa.
E, naturalmente, de expressar com clareza, frontalidade e liberdade o seu ateísmo militante. Seja nos seus livros, seja nos seus ditos.
Mas para se ser respeitado nas suas opiniões, é preciso ter-se a inteligência, a razoabilidade e a prudência de se dar ao respeito. Uma coisa é Saramago defender o seu pensamento livre. Outra é o modo como o faz. Com acidez, arrogância, intolerância e sectarismo extremos.
Pretensamente auto-dotado de uma superioridade intelectual e moral desde que foi galardoado com o Nobel acha-se pateticamente acima dos outros. Por isso, não argumenta, agride. Não opina, sentencia. Não confronta, insulta. Não esclarece, obscurece. Não convoca, provoca. Não fundamenta, opta pelo fundamentalismo.
O curioso é que, depois de tudo o que diz e escreve com a liberdade de que, aliás, felizmente dispõe, estranha as posições de quem o confronta. Nada que me espante, sabendo-se do modo como tratava os "delitos de opinião", por exemplo, quando foi director de um jornal.
José Saramago é um paradoxo: é religiosamente anti-religioso. O seu proselitismo é a expressão de uma nova moda religiosa: o ateísmo pretensamente humanista. Saramago acaba de editar mais um livro e aproveita a ocasião para um diktat gratuito tão ao seu gosto pessoal. A Deus tudo culpa, a Deus chama tudo o que de mal possa haver, ao mesmo tempo que diz não existir. Em que ficamos?
A Bíblia, para ele, é um manual de maus costumes e um catálogo de crueldades, num recorrente certificado de menoridade antropológica do próprio homem. Não percebe que a Bíblia (e sobretudo o Antigo Testamento) é também a história da condição humana feita de luz e de sombras, do bem e do mal que coexistem por conta da liberdade humana. Deus não nos fez robots. Logo a seguir a Caim e Abel, Deus diz "Meu espírito não se responsabilizará indefinidamente pelo homem" (Génesis 6,3).
Saramago olha para a Bíblia e interpreta-a rudemente à letra, sem contextualização, como se estivesse a ser escrita agora. Só lhe falta um Deus a comunicar por telemóvel.
Saramago odeia visceral e mefistofelicamente a ideia de Deus e dos Livros Sagrados. Está no seu direito. Mas revê-se no estalinismo, nos seus gulags e pogroms, para ele, por certo, ícones dos bons costumes e das boas práticas.
Saramago é um incompreendido. Nega um Deus (que, apesar de não existir, é a causa de todos os males.) que, todavia, não é capaz de esquecer. Deus não existe mas não lhe sai do pensamento. Estranho, não é? À conta deste pesadelo, decreta impositivamente um atestado de quase insanidade sobre os que, para si incompreensivelmente, crêem em Deus. Saramago procura chamar à realidade milhões e milhões de pessoas
que, ao longo dos tempos, vivem nas trevas, sem inteligência e discernimento, manipuladas por um Deus menor. Cautelosamente, o Deus menor da Bíblia que não o do Corão .
Enquanto católico, não sou nem mais nem menos pessoa do que Saramago. Mas tenho o direito à defesa dos valores em que acredito. Não me revejo nos arautos da atitude política e religiosamente correcta que, com calculista "respeitinho" pelo Nobel, se remetem a uma espécie de coligação do silêncio. Como também não perfilho a ideia da indiferença ou da contrafacção da religião. A fé é um acto de liberdade porque sem liberdade não haveria qualquer mérito em crer.
Que esta polémica de puro marketing tenha pelo menos a vantagem de levar mais cristãos a ler ou reler a Bíblia. Só por isso agradeço a Saramago.
Quanto ao resto, a publicidade não é uma medida divina. Deus é misericordioso e perdoa a Saramago."
António Bagão Félix
6 comentários:
uma óptima opinião e apesar de gostar muito da obra inicial de Saramago, não posso deixar de concordar que se tratou de uma verdadeira campanha de marketing (com muito bons resultados, diga-se). Paralelamente a isso acho que, de facto, Saramago é bastante dogmático nas posições que defende
um beijo
uminuto,
um comentário sereno, já esperava, obg.
beijo
:-)
E assim se diz tudo, muito calmamente.
Gi, exactamente :-)
Excelente, Flip!
P.S.: O ateísmo militante resume-se naquela frase citada, há dias, pelo João Pereira Coutinho: não é tanto não acreditar em Deus, como detestá-lO. :-)
Luísa,
penso que terá sido a 'resposta' mais inteligente e completa e até um 'recado' à Ig Católica;
tb gosto imenso do JPCoutinho, uma rapaz com muito bom senso, aquela coluna dele no CM tem por vezes assuntos interessantes
:-)
Enviar um comentário