domingo, 31 de janeiro de 2010

“Esta noite me sento na varanda, sob o céu estrelado. Sob o céu, não. Estou, sim, entre o céu. O firmamento está à mão de semear, respiro devagar com receio de desarrumar constelações”.

(...)

“Perseguida pelo medo da velhice, deixei envelhecer a nossa relação. Ocupada em me fazer bela, deixei escapar a verdadeira beleza, que apenas mora no desnudar do olhar. O lençol esfriou, a cama se desaventurou. Esta é a diferença: a mulher que encontraste aí, em África, fica bela apenas para ti. Eu ficava bela para mim, que é um outro modo de dizer: para ninguém.

É isso que essas negras têm que nunca podemos ter: elas são sempre o corpo inteiro. Elas moram em cada porção do corpo. Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nós, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa.”

(...)

“ – És parecida com a terra. Essa é a tua beleza.

Era assim que dizias. E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e, entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste? E me respondias, voz trémula: estou nascendo agora. E a tua mão ascendia por entre o vão das minhas pernas e eu voltava a perguntar: onde nasceste? E tu, quase sem voz, respondias: estou nascendo em ti, meu amor. Era assim que dizias. Marcelo, tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. E quando me escrevias, era tão belo o que me contavas que me despia para ler as tuas cartas. Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro por poro.”

Mia Couto in Jesusalém (extractos)

e muito mais, um livro excelente, dos melhores de Mia.

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