sexta-feira, 20 de março de 2009


O dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água. Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo. Aproximei e lhe perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas.
- A água está quentinha ?
- Não recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.
E explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias babas, com o devido respeito. E salvo seja.
- Dá licença eu entrar?
- Entrar onde?
- Nessa água onde a senhora está ser banhada.
Entrei, fui-me achegando perto da vizinha. Me entornei na toalha da água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e corpo. Espreitei pela esquina dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embenvencida, parecia um navio repousando em desenho de criança. De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos atrás das costas.
- Susto, Dona! O que foi?
Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.

Mia Couto, in "Mar me quer", 2000

2 comentários:

Maria Eduarda disse...

Difícil é escolher um texto de qualquer livro do Mia não é?

Flip disse...

c0ncordo MÉ...
:-)