" Toda a gente sabe que a economia é a força mais poderosa do mundo. O dinheiro manda e só a riqueza conta. Mas o que toda a gente sabe costuma ser um grão de verdade embrulhado em disparates.
No tempo da globalização e tecnologia, finanças e Internet, quem mais ordena é a economia. A explicação para divórcios e traições, esforços e carreiras, políticas e guerras são os interesses monetários e produtivos. Todos vivemos debaixo da lei da procura e oferta e o mundo está dominado por interesses, negociatas, multinacionais.
Esta tese é mais difícil de justificar do que parece. Um princípio básico da economia, a "lei da utilidade marginal decrescente", diz que quanto mais temos, menos o valorizamos. Só a escassez faz subir o valor. Como vivemos a maior prosperidade de sempre, a própria ciência económica ensina que seria de esperar menor preocupação com o dinheiro. Afinal, quem tem fome é que vive obcecado com isso. Como pode este tempo ser mais, e não menos, dirigido pela economia?
Há quem pense que o dinheiro está isento dessa lei. Aristóteles, por exemplo, dizia que o dinheiro tem algo de especial: "Uma vez inventada a moeda por causa das necessidades da troca, nasce uma outra forma de arte de adquirir, a forma comercial, (...) que procura o maior lucro possível" (Política 1257b.1-5). Essa nova "arte de adquirir" tem a característica de corromper todas as outras actividades: "A coragem (...) a estratégia ou a medicina, o seu fim não é fazer dinheiro mas dar a vitória ou a saúde. No entanto, essas pessoas tornam tudo isso objectos de especulação, na ideia de que essa é a finalidade e que é preciso dirigir tudo para esse fim" (1258a.13-14). Assim, a moeda cria uma acumulação sem limites (1257b.25), ligada ao "desejo de viver que não tem limite" (1257b.40).
Se o amor ao dinheiro é sem limite e não está sujeito às leis dos outros bens, confirma--se a explicação comum. Mas uma outra constatação gera muitas dúvidas. Quando alguém afirma que o dinheiro faz andar o mundo, vale a pena perguntar-lhe se ele próprio também é assim; se ele é tão mesquinho, interesseiro e ganancioso como diz ser o mundo. Em geral a resposta é negativa. Os outros são materialistas e ambiciosos, mas ele ama a sua família e amigos, pretende alegria e paz planetária, gosta de arte e meditação. Devemos sempre desconfiar de teorias sobre a natureza humana cujos próprios autores não aplicam ao único ser que conhecem bem: eles mesmos.
A verdade é que a amizade, a fé, orgulho, medo, curiosidade, patriotismo e tantas outras motivações contam hoje tanto ou mais que a simples riqueza. Afinal o nosso tempo não é muito diferente dos anteriores. A natureza humana evolui muito mais devagar que o desenvolvimento social. Claro que os interesses pecuniários têm grande poder, hoje como sempre. Mas o facto de serem em geral disfarçados, hoje como sempre, mostra não serem assim tão dominantes. Existem alguns sem-vergonha de apregoar que "a ganância é boa", como o especulador Ivan Boesky (discurso na escola de Gestão da UC Berkeley, 18 de Maio de 1986) ou o seu homólogo Gordon Gekko no filme Wall Street (Oliver Stone, 1987). Em geral acabam na cadeia.
Uma coisa mudou porém: hoje estamos mesmo convencidos de que a economia manda, coisa que os séculos anteriores não pensavam. De onde veio isto? Trata-se da única herança que resta de uma das teorias mais influentes no século passado. A "concepção materialista da História", chamando a atenção para a influência da infra-estrutura produtiva na evolução da sociedade, foi um dos maiores contributos do grande génio que foi Karl Marx. Mas, como tudo, a absolutização dessa explicação cai em erros enormes. A economia é relevante, mas não exclusiva.
Hoje, quando o materialismo dialéctico está na estante das teorias clássicas, ainda há muita gente que, mesmo abominando o comunismo, continua a aderir inconscientemente ao seu postulado mais básico. Cada vez que se diz que a economia manda no mundo está a ser-se marxista. A ideologia morreu; só ficou o cinismo."
segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
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