quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


“Emanuel foi dispondo as pedras e, pacientemente, contou. Com muito treino pode jogar-se xadrez sem tabuleiro. Os viajantes portugueses do tempo das descobertas contavam que os árabes, para entreterem o tempo nas longas caravanas, jogavam xadrez de memória, de camelo para camelo. E falou em André Philidor, em Capablanca, em Alekhine...
- Lérias – rosnou o homem muito seguro de si. – Tape-me esses olhos que eu fodo-o logo!
- E4 – anunciava Emanuel mais tarde, com os olhos vendados por um lenço preto, e ainda por cima voltado de costas para o tabuleiro.
- Quê?
- E2-e4 – explicitou Emanuel.
- Mas que merda é esta? Falamos chinês ou o caraças?
- Mas como, prefere a notação geométrica?
- Geométrica o tanas, eu quero é que você me diga as suas jogadas ou o caraças.
Aquela voz, à medida que enferrujava, tornava-se cada vez mais autoritária.
- Faça avançar duas casas o peão que está em frente do rei branco.
- Ok, agora sou eu – as peças estalaram com força no tabuleiro como as do dominó jogadas por peritos de taberna, na fórmica das mesas. – Afinfo-lhe com os dois cavalos!
-Perdão?
- Os dois cavalos, caraças!
Som de líquido a gotejar de fiada. Mais uma rodada, pensou Emanuel.
- Mas, desculpe lá, não pode sair com os dois cavalos ao mesmo tempo...É contra as regras...
- Ai que este está a querer fornicar-me! Pensas que eu comecei a jogar esta merda ontem?
- Desculpe. Assim não continuo.
Desamparado ruído de uma cadeira que tombava. Emanuel, numa pressa, desvendou-se. Januário espalhou as peças no tabuleiro e olhou para ele com um ar torvo.
- Cabrão do puto. Queria-me ensinar a jogar xadrez, o sacana! Ainda os teus pais não eram nascidos já eu jogava xadrez em tudo o que era caserna e em tudo o que era messe lá na tropa, ou o caraças, pá.”

Mário de Carvalho in Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina

2 comentários:

Maria Eduarda disse...

Gostava que o cabrão do puto me ensinasse a jogar xadrez. Gostava mesmo!

Flip disse...

não sabes mÈ? eu ensino-te :-)