quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009


"Quando acordo à meia-noite, fico às voltas na cama, com o pano da almofada a arder-me na cara e repetindo até ao amanhecer: 'Olhos de cão azul'.
Então eu parei, a cara contra a parede. "Já está a amanhecer", disse sem olhar para ela. "Quando soaram as duas da manhã, estava acordado, e já passou muito tempo." Dirigi-me para a porta. Quando agarrei a maçaneta, ouvi outra vez a voz dela, igual, invariável: "Não abras essa porta, o corredor está cheio de sonhos difíceis". E eu disse-lhe: "Como é que sabes?" E ela disse-me: "Porque há pouco estive lá e tive de voltar quando descobri que estava a dormir sobre o coração". Eu tinha a porta entreaberta e uma aragem fria e leve trouxe-me um cheiro fresco a terra vegetal, a campo húmido. Ela falou outra vez. Voltei-me, fazendo rodar a porta nos seus gonzos silenciosos, e disse-lhe: "Acho que não há corredor nenhum aqui fora. Sinto o cheiro do campo". E ela, já um pouco longe, disse-me: "Conheço isto melhor do que tu. O que se passa é que lá fora está uma mulher que sonha com o campo". Cruzou os braços sobre a chama. Continuou a falar: "É essa mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca conseguiu sair da cidade". Eu lembrava-me de ter visto a mulher num qualquer sonho anterior, mas sabia já, com a porta entreaberta, que dentro de meia hora teria de descer para o pequeno-almoço. E disse-lhe: "Seja como for, tenho de sair daqui para acordar".

Gabriel García Marquez in “Olhos de cão azul”

2 comentários:

Maria Eduarda disse...

24 horas depois de se ter acabdo um livro já esquecemos 80% do que lemos. É por isso que há livros que leio vezes sem conta. E autores como este fazem parte da minha lista de repetições.

Flip disse...


alguns nem saem da mesinha de cabeceira não é? E também os riscas, sublinhas, inundas as margens com anotações?
:-)